Culturas, Ativismos e Mudanças Culturais
Helena Ferreira
Maria Manuel Baptista
Os ativismos podem ser considerados como uma das muitas formas de envolvimento cívico em que um indivíduo pode participar (Jeong, 2013), tendo em conta que o mesmo indivíduo pode adotar diferentes formas de ativismo, em diferentes eventos de protesto, dependendo da causa política (Svensson, J, et al., 2012).
Apesar de existirem variadas definições de “ativismos”, identificamo-nos com a proposta de inspiração deleuziana defendida por Svirsky, ao afirmar que “o ativismo é definido (…) como envolvendo instigações locais de novas séries de elementos que se cruzam com o real, gerando novas enunciações, experimentações e investigações coletivas, que corroem o bem e o bom senso e fazem com que as estruturas se afastem de suas identidades sedimentadas” (2010, p. 163).
Os ativismos surgem, então, nas nossas sociedades como uma forma de resistência às políticas instituídas, de defesa dos direitos humanos e de luta por justiça social, procurando, assim, atingir diretamente os seus objetivos, tentando persuadir e/ou apelar aos poderes instituídos para que promovam mudanças. Contrariam, deste modo, a ética normativa ocidental, que tenta impor um quadro democrático que limita e reprime todas as formas nómadas de resistência (Svirsky, 2010).
A insistência dos Estudos Culturais em compreender as organizações de poder, mas também as possibilidades de “luta, resistência e mudança” (Grossberg, 1997, p. 253), de várias formas e em diferentes tempos, no sentido de dar resposta às questões ético-políticas do quotidiano, faz desta área um locus de conflito por excelência. Baptista (2009, p. 453) reivindica mesmo que os Estudos Culturais assumem um “compromisso cívico e político no sentido de estudar o mundo, de modo a poder intervir nele com mais rigor e eficácia, construindo um conhecimento com relevância social (…), a partir dos princípios da democracia cultural”.
Apesar disso, ou precisamente por isso, pretendemos, no contexto do IX Congresso em Estudos Culturais: Culturas, Ativismos e Mudanças Culturais, continuar a aprofundar a reflexão entre as relações polémicas e por vezes tensas entre ativismos e academias. Na verdade, não é sem razão que Kathy Hytten (2017) considera que trazer as temáticas dos ativismos para as academias é correr o risco de reproduzir as normas opressivas do meio académico ocidental, o qual define o que deve ou não deve ser valorizado, o que pode ou não ser debatido nos meios académicos.
Sublinhe-se que o presente congresso procura o debate sobre ativismos e mudanças culturais a partir de um contexto teórico pós-estrutural e decolonial, que procura derrubar e/ou descentrar as “estruturas”. Neste sentido abandonámos a pretensão à exaustividade, à sistematicidade e à universalidade científica, que pretende transformar as salas de aula das academias em espaços ‘sagrados’ de produção solipsista do conhecimento. Pelo contrário, o que pretendemos é dar lugar à compreensão e aprofundamento dos fluxos rizomáticos expressos pelos ativismos, estabelecendo o compromisso com a contingência e a abertura à realidade social onde as mudanças culturais ocorrem, para que se possa caminhar para “um trabalho crítico, de oposição política e até mesmo mudança histórica” (Grossberg, 2010, p. 8-9).
Svirsky (2010), fazendo uma analogia entre revoluções e ativismos, defende que os revolucionários existem sempre em muitas dimensões, no meio daquilo de que tentam escapar e contra o qual lutam, entrelaçados com o que pretendem alcançar e o material que começam a experimentar. A passagem é que é revolucionária e não a chegada final a um novo ritmo. A diferença para os ativismos é que estes não são essa passagem de ritmos; pelo contrário, são subritmos temporários de denúncia, golpeando o primeiro ritmo, a partir do qual esculpem um devir em novos territórios. Raunig (2007), explica numa metáfora: “são mais os primeiros passos num terreno aparentemente novo, colocado no terreno antigo, lutando contra este terreno antigo e usando-o ao mesmo tempo para transformá-lo em algo diferente” (Raunig 2007, pp. 41–42).
A pertinência deste tema justifica-se pela sua atualidade. Nunca, como agora, os ativismos foram tão dinâmicos e tiveram tanta visibilidade. Nas sociedades pós-industriais e neoliberais, as expressões dos ativismos assumiram formas muito mais amplas e pluralistas, apoiadas e até encorajadas pelos equipamentos e média digitais (Changfoot, 2006; Fuad-Luke, 2009; Campos, Pereira & Simões, 2016). Efetivamente, as políticas neoliberais criaram um cenário incrivelmente contraditório para o ativismo, a resistência e a política urbana, de um modo geral (Long, 2013): a neoliberalização das cidades contribuiu tanto para a criação de um ambiente mais hostil para os ativismos, como para a sua disseminação e uma articulação muito mais global dos protestos (Mayer, 2009).
Nas últimas décadas, leis, propostas de lei ou outras tentativas individuais e/ou coletivas, por parte do Estado ou de outras organizações e/ou individualidades, e que se tornaram polémicas e atentórias dos direitos ou mesmo revertendo direitos adquiridos, tiveram como resposta ondas de ativismos, numa demonstração de força que opõe o poder institucionalizado e normatizado, ou com pretensão a isso, às comunidades que representam. No presente contexto cultural, essas ondas chegam, rapidamente, a todo o lado, quer através dos meios de comunicação tradicionais, quer através das redes sociais.
E se, de facto, os ativismos são o conatus das revoluções (Svirsky, 2010), atrás dessas ondas seguem-se outras ondas, porque, logo que as pessoas ativistas atinjam os objetivos pelos quais lutavam, distanciam-se dessa luta e partem para outra, uma vez que “o poder de criação como poder constituinte permanece fiel ao eterno retorno da diferença e afasta-se das armadilhas do poder constituído” (Svirsky, 2010, p. 169).
A investigação sobre esta matéria enfrenta, por isso, enormes desafios para tentar compreender a ampla gama de ações e questões que os ativismos desenvolvem, bem como as motivações que levam as pessoas ativistas a envolverem-se nas múltiplas causas que defendem. Trata-se, com efeito, de um tema intrinsecamente controverso, quer do ponto de vista epistemológico, quer político e académico, cujos pontos de colaboração, inflexão e fricção queremos debater no contexto do IX Congresso em Estudos Culturais: Culturas, Ativismos e Mudanças Culturais.
A reflexão que queremos promover tem como objetivo explorar os seguintes eixos temáticos ao longo dos quais os ativismos variam profundamente, constituindo uma geografia variável, em mutação permanente:
- ativismos que contestam os poderes vigentes, mas também aqueles que funcionam dentro dos sistemas políticos formais;
- ativismos tradicionais versus ativismos mais inovadores e disruptivos;
- ativismos digitais e as relações do online com o offline;
- a pluralidade metodológica, tanto na forma de participação em ações ativistas, como na investigação sobre ativismos;
- as responsabilidades das investigadoras e investigadores pelas implicações práticas do seu envolvimento em investigações sobre ativismos.
O tema proposto para o IX Congresso Internacional em Estudos Culturais: Culturas, Ativismos e Mudanças Culturais abrange uma enorme variedade de preocupações macro e microssociais, visando compreender os ativismos em contextos culturais e específicos. Convidamos, por isso, as investigadoras e investigadores, bem como as pessoas ativistas a refletirem sobre elas, nas dimensões teóricas, metodológicas, empíricas e de produção artística, contribuindo com trabalhos e/ou intervenções originais e inovadoras.
Referências bibliográficas
Baptista, M.M. (2009) “Estudos culturais: o quê e o como da investigação”, Carnets, Cultures littéraires: nouvelles performances et développement, nº spécial, automne / hiver, 451-461.
Campos, R., Pereira, I & Simões, J.A. (2016). Ativismo digital em Portugal: um estudo exploratório. Sociologia, Problemas e Práticas [Online], 82, consultado em 19 de fevereiro 2024. URL: http://journals.openedition.org/spp/2460
Changfoot, N. (2006) Local activism and neoliberalism: performing neoliberal citizenship as resistance, Studies in Political Economy 80: 129 – 149.
Fuad-Luke, A. (2009). Design activism : beautiful strangeness for a sustainable world. London: Earthscan.
Grossberg, L. (1997). Bringing it all back home. Essays on Cultural Studies, Durham: Duke University Press.
Grossberg, L. (2010). Cultural Studies in the Future Tense. Durham, NC: Duke University Press.
Hytten, K. (2014). Teaching as and for activism: Challenges and possibilities. Philosophy of Education Archive, 385-394.
Jeong, H. O. (2013). From civic participation to political participation. VOLUNTAS: International Journal of Voluntary and Nonprofit Organizations, 24(4), 1138-1158.
Long, J. (2013) Sense of place and place-based activism in the neoliberal city. The case of ‘weird’ resistance. City: analysis of urban trends, culture, theory, policy, action, 17 (1): 52 – 67.
Mayer, M. (2009). “The “Right to the City” in the Context of Shifting Mottos of Urban Social Movements.” City 13 (2–3): 362–374.
Raunig, G. (2007). Art and Revolution: Transversal Activism in the Long Twentieth Century, trans. Aileen Derieg, Los Angeles: Semiotext(e).
Svensson, J. et al., (2012); What kind of activist are you? Positioning, power and identity in political online activism in Europe. In N. Edelmann, & P. Parycek (Eds.), CeDem2012. Conference on E-Democracy and Open Government (pp. 165-177). Donau-Universität-Krems.
Svirsky, M. (2010). Defining Activism. In Svirsky, M. (Ed.) Deleuze and Political Activism. Deleuze Studies Volume 4: 2010 supplement: v, pp. 163-182.